Entrevista a Fátima Sarsfield Cabral

A Drª Fátima Cabral é Psicanalista Didata do Núcleo Português de Psicanálise e da IPA.
É autora do livro “Pensar a Emoção – O Processo Psicanalítico como Reconstrução da
Barreira de Contacto” Ed. Fim de Século. Lisboa 1998.

Com grande sensibilidade psicanalítica, refere na contracapa:
O ser humano nasce num mundo simbólico e, ao contrário dos outros animais, caracteriza-se pela sua incompletude e pelo seu desamparo original; daí a necessidade
vital de vínculos (Amor, Ódio e Conhecimento, de sinal positivo e negativo) e da
construção de um “aparelho de pensar os pensamentos/emoções”, já que, como diz
Bion: “(…) a atividade de pensar é embrionária e ainda não foi plenamente desenvolvida na espécie”. A investigação em psicanálise far-se-á então sobre o desenvolvimento e a natureza dos “pensamentos/emoções”, sobre a natureza do aparelho desenvolvido para tratar esses “pensamentos” e só depois sobre o conteúdo do pensamento ou sobre o que levou ao seu afundamento. A capacidade de pensar a emoção, de sonhar, de criar e de ligar/separar o consciente e o inconsciente, a realidade e a fantasia, dá-nos a qualidade desse aparelho – a que Bion chamou barreira de contacto – destinado a compreender, a simbolizar e a transformar as experiencias emocionais de uma forma binocular, isto é, usando o consciente e o inconsciente, tal como utilizamos os dois olhos para a apreensão das qualidades sensíveis.

Fiquei muito satisfeita por ter aceite participar nas entrevistas do Internal Habitats.

As entrevistas são importantes para divulgar a Psicanálise, até porque não está, atualmente, presente nas faculdades. Quando eu comecei, no Centro de Saúde Mental Infantil do Porto, fazia muito trabalho com os internos de psiquiatria, com enfermeiros, psicólogos, educadores de infância, e fazia-se uma sensibilização à Psicanálise. E houve muitas pessoas que foram para a Psicanálise, pelo menos cá no Porto, por causa dessa sensibilização.

Foi a Isolina Pinto Borges, que tinha feito uma análise, que começou com a Faculdade de Psicologia, e quem ela convidou para dar aulas foram a Celeste Malpique, o Jaime Milheiro e o Eurico Figueiredo, que também estavam ligados à psicanálise e que trabalhavam nos centros de saúde mental, portanto, pessoas com quem eu trabalhava. Fui para assistente da Celeste e do Eurico no princípio da década de 1980.

Mas em 1986, ou talvez mais tarde, os novos dirigentes da Faculdade de Psicologia disseram que não queriam psiquiatras nem psicanalistas e puseram-nos todos fora: a Celeste, o Milheiro, o Eurico. Então eu, que era assistente, achei que também me devia demitir e demiti-me. Dei lá aulas durante esse tempo todo. Portanto, deixou de haver Psicanálise nas faculdades aqui no Porto, deixou de haver em Lisboa, só o ISPA ainda mantém, acho eu, mas muito menos e, portanto, é muito complicado divulgá-la.

 
Disse que fazia sensibilização à Psicanálise não só para médicos e enfermeiros, mas também para educadores de infância. Esse trabalho era ligado à Faculdade de Psicologia?

Não, não era. Eu sou considerada um dos «pais» da Psicologia no Porto – não tenho o curso de Psicologia, ainda sou de Filosofia, e nos dois últimos anos de Filosofia é que havia umas cadeiras de Psicologia. E fui para Filosofia porque sempre quis Psicologia e Psicanálise, desde a adolescência que eu queria muito. Mas como eu dizia, quando me formei, em 1972, quis fazer um estágio em Psicanálise, e havia um psiquiatra no Porto, o Pimentel da Neves, que era uma pessoa muito aberta, foi ele que fez os Centros de Saúde Mental Infantil e de Adultos, em todo o país. No Porto, o Centro de Saúde Mental Infantil, para onde fui trabalhar, era um casarão antigo, com um grande jardim, ali perto do Palácio de Cristal. Formaram-se equipas multidisciplinares de médicos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros, educadores de infância, psicólogos, terapeutas ocupacionais. Isto era uma coisa novíssima. Era como funcionava em Paris, naquela altura tinha aberto o Centro Alfred Binet, onde estavam o Diatkine, o Lebovici… Por isso, comecei também a formar educadores de infância e a dar importância, com eles, a todo um conhecimento da psicanálise e das fantasias.

Nessa altura, pedi um estágio, que o Pimentel das Neves aprovou. Só fui em setembro de 1974 para o Centro Alfred Binet, o que foi bom, porque eu ainda pude assistir ao 25 de Abril. Outra coisa importante foi que, apesar de já não ser obrigatório escrever um trabalho final de curso, eu resolvi fazê-lo para ter uma bolsa do governo francês, com a orientação da Isolina Pinto Borges, acerca da dinâmica de grupos. Eu estudei o Bion nessa altura, li tudo, mas nem me passava pela cabeça que iria ser tão importante na minha vida. 

Então, pedi o estágio para Paris, para o Centro Alfred Binet e estive lá um ano, de setembro de 1975 até julho de 1976, foi um ano letivo. Eu era novíssima, diziam que eu era a debutante. Assistia a tudo o que podia, estava inserida numa equipa, via crianças, assistia às consultas, também às do Lebovici e do Diatkine, foi importantíssimo para mim. Claro que também quis ir ver outras coisas, nessa altura fui a Vincennes, lembro-me de ter lá visto os defensores da antipsiquiatria em aulas onde as pessoas não cabiam, tudo de pé, sentado no chão, foi um ano fantástico. Entretanto, voltei, fiz também formação em psicodrama psicanalítico, em terapia familiar e trabalhava com os psiquiatras, que também eram psicanalistas, o Eurico Figueiredo, a Celeste Malpique, o Jaime Milheiro – que foi depois meu analista, e claro que não podia fazer mais nada com ele. Fiz formação durante muito tempo.

 
Mas estava na equipa do Centro de Saúde Mental Infantil. 

Estava nessa equipa e, por volta de 1980, a Celeste Malpique, que era a diretora, pediu-me para eu – como estava já numa fase adiantada da formação psicanalítica e tinha feito formação em grupos – de certa maneira, reinventar aquilo. Havia os grupos de ludoterapia, ou de jogos, orientados pela Fernanda Flores, e os grupos de pintura, orientados pela Manuela Malpique, irmã da Celeste, mas eram só grupos, digamos assim, catárticos, porque não havia a significação pela palavra. Então, desenvolvi uma psicoterapia analítica de grupo para crianças no período de latência utilizando o jogo livre e a pintura livre. Nos grupos de jogo livre, com 8 ou 9 crianças dos seis aos nove anos, havia uma sala enorme, com um material muito simples que dava para tudo: colchões, cordas, lenços de cores, almofadas… 

Resolvemos refazer os grupos, que até então eram mistos, e experimentámos fazer grupos unissexuais. Outra coisa importante, que parece o ovo de Colombo, os pais ou as mães, geralmente eram as mães, levavam as crianças uma vez por semana, durante uma hora, e ficavam na sala de espera. Então, porque não fazer nessa hora um grupo de pais com uma assistente social, a Inocência Margarida Garcês, que também tinha feito uma análise? E, não há dúvida, houve muito menos faltas, foi importantíssimo para os pais, e pudemos ver e comparar o que se passava no grupo dos pais e dos filhos. 

E claro, no princípio do ano, fazíamos uma reunião, a única em que estavam os pais, os filhos e os terapeutas todos, em que explicávamos que as crianças iam ali porque às vezes era difícil falarem com os pais, e que era segredo o que acontecia no grupo das crianças, porque nós não íamos dizer o que se passava – e os miúdos também ouviam isto, e os pais percebiam, digamos assim. Dizíamos as regras todas.

Havia então os grupos de pintura e os grupos de jogos. Nestes, as crianças, no início, sentavam-se todas, para falarem do que quisessem e, quando não quisessem já falar de mais nada, podiam levantar-se e ir brincar em jogo livre. Dez ou quinze minutos antes do fim, chamávamos para conversarmos e aí aproveitavamos para interpretar, o que consolidava ainda mais a compreensão do que tinha acontecido. Depois, os terapeutas dos grupos de pais e dos grupos de crianças reuniam e conversavam acerca do que se passava, e isto deu um resultado excelente. 

A certa altura, a Celeste perguntou-me: «Como é que vai fazer para interpretar no grupo de pintura, tão diferente do grupo de jogos?» E eu pensei: «Numa psicoterapia individual, em que as crianças desenham, pintam, posso interpretar.» No grupo de pintura eles pintavam em grandes folhas, que eram postas nas paredes e, no fim, também se sentavam para conversarmos. Como dizia, pensei: «Isto pode ser como interpretar um sonho, porque cada pintura é como se fosse uma parte de um sonho e posso ligar isso ao que eles dizem». Fazíamos assim, e foi mesmo muito interessante, deu um avanço muito grande. Os pais ficavam muito espantados, os professores comentavam: «Como é que eles, que não aprendiam nada, de repente começaram a aprender?» Também tínhamos junto de nós terapeutas – a Isabel Quinta da Costa e eu -, um pedopsiquiatra, um enfermeiro ou um psicólogo em formação, a observar e a tomar notas. 

 

Então havia estas duas componentes, a intervenção terapêutica e a formativa. 

Exatamente, e isso foi muito bom. 

 

Depois acabaram os Centros de Saúde Mental Infantil, em 1992, salvo erro.

Sim, acabaram com os Centros de Saúde Mental Infantil, integraram-nos na Psiquiatria e fomos trabalhar para o Hospital de Magalhães Lemos. Mas o Centro de Saúde Mental era um sítio que estava junto da população e não tinha associado o estigma de ir à Psiquiatria. 

 

Era uma casa.

Era uma casa! E que tinha um Hospital de dia, no fundo do jardim, com crianças mais graves, autistas ou psicóticas. Realmente foi um tempo extraordinário. Depois fomos integrados no Magalhães Lemos, conseguimos fazer os grupos lá, apesar de tudo, mas não era a mesma coisa.

A sua vida institucional esteve sempre ligada ao Centro de Saúde Mental e ao Magalhães Lemos?

Trabalhava no Magalhães Lemos, mas pertencíamos ao Hospital Maria Pia, para crianças. E, por fim, quando eu estava a pensar em reformar-me, deixei pessoas que podiam substituir-me, uma psicóloga, uma enfermeira. Mas quando fui embora acabaram tudo, foi uma pena.

Isto por estarmos a falar da importância de divulgar a Psicanálise e de formar, quer dizer, de sensibilizar.

A Psicanálise é mais do que a relação clínica, é também essa intervenção junto da comunidade. Achei importante aquilo que estava a dizer e pareceu-me que, no Porto, houve muito trabalho de ligação entre a Psicanálise e a comunidade.

Talvez, não sei. Se foi, foi por causa do Pimentel das Neves, que já morreu há muito tempo, mas não só, também os psicanalistas estavam motivados para isso.

Mas há uma pergunta que eu gostava de ter já feito e pela qual começo sempre: quem é a Fátima Cabral?

[Risos] Eu não sei. Olhe, nasci no Porto, numa casa típica do Porto; nós somos cinco irmãos, e eu sou a quarta. O primeiro é um rapaz, o Francisco Sarsfield Cabral – conhecido da TV e da rádio como comentador de economia, depois tenho duas irmãs, uma formada em Letras, que deu aulas e esteve presa pela Pide, antes do 25 de Abril; outra, é artista, estudou Belas-Artes. Fez um estágio em Itália e foi ela que começou por restaurar todos aqueles frescos lindíssimos do Alentejo, e depois em todo o país. Agora está reformada.

Depois sou eu, que, logo na adolescência, percebi, como eram muito importantes para mim a Psicologia e a Psicanálise. Havia muitos livros em minha casa, incluindo de Psicanálise e sobre a Psicanálise. E eu, como tive um problema na coluna vertebral e estive muito tempo em casa, entre os 14 os 16 anos, só lia, ouvia música, e também tive de sair do liceu por causa disso. E, portanto, aqueles livros faziam-me perceber o que eu estava a sentir e a viver.

A seguir, é outro irmão, que é engenheiro, professor catedrático da Universidade do Porto, e que também já se reformou. E eu sou uma portuense de gema. Como pedi o estágio para ir para Paris, antes do 25 de Abril, imaginei que ia lá ficar, não aguentava o regime aqui, como se vivia aqui. Depois, felizmente, houve o 25 de Abril, mas eu fiquei no Porto, continuo cá, e gosto imenso. As minhas irmãs quiseram ir para Lisboa, depois de se formarem, mas eu nunca quis. Só que, por causa disso, tive de ir a Lisboa durante muitos anos, todas as semanas, para fazer a formação psicanalítica e depois para formar os novos candidatos.

Para os primeiros analistas do Porto foi muito exigente, todos tiveram de ir a Lisboa.

Claro, a Celeste e o Milheiro iam todas as semanas a Lisboa, quando eu estava a fazer análise com ele. Eu sou da geração seguinte.

Portanto, quem é que eu sou, sou apaixonada pela Psicanálise, mas não só, também gosto imenso de artes, de ver museus, de viajar, adoro viajar.

De que forma essas outras experiências contribuem para a sua identidade psicanalítica?

Acho que é muito importante. Por acaso, lembro-me, quando fui fazer as entrevistas para poder entrar para a Sociedade Portuguesa de Psicanálise [SPP], que uma das entrevistas foi com o Mário Casimiro. Começou a conversar comigo e percebeu que eu gostava de ler, de teatro e de cinema e disse-me: «É isso mesmo, o psicanalista tem de ter contacto com isso tudo, com a arte, com as outras ciências, com a vida».

Estava a dizer que por uma exigência de saúde, ficou muito isolada numa altura difícil, na adolescência, e que as suas leituras a ajudaram a viver e a perceber melhor aquilo que se passava.

Exatamente. E depois, a análise foi a coisa mais importante. Logo que voltei de Paris, achei muito importante começar uma análise. E lembro-me de que sentia como se estivesse a retomar o que tinha parado aos 13, 14 anos. Aos 14 anos parou ali qualquer coisa, não tudo… Mas interiormente, julgo que perdi imenso, fiquei muito tímida, inibida, não sabia falar, não sabia estar com as pessoas, era a sensação que eu tinha. Quer dizer, em Paris fiz amizades, estive num grupo de teatro, mas faltava qualquer coisa, e por isso penso que a minha análise foi uma experiência importantíssima.

Do seu ponto de vista, o que pode uma pessoa ganhar com uma análise?

Ah, ganha imenso.

Mas como se pode transmitir por palavras? Passa muito pela vivência individual e, às vezes, essa vivência não é fácil de transmitir.

Olhe, é uma capacidade de pensar, de desenvolver a função psicanalítica da personalidade, é assim que eu gosto de pensar nisso. É ganhar muito mais elasticidade, não haver tanta clivagem. Ou seja, é passar da posição esquizo-paranoide para a posição depressiva, perceber que a pessoa que nós achamos que é muito boa também tem coisas más, saber essa dialética constante. É uma dialética interna que também dá para a externa, mas temos que ter esse trabalho feito internamente… Se calhar, por isso é que este mundo está assim, parece que não há ocasião de parar para pensar, é só agir. Portanto, penso que uma pessoa pode ganhar imenso. Mesmo em relação à criatividade, lembro-me de ter tido pessoas artistas em análise que tinham medo de deixar de ser criativas, mas é o contrário, pode-se ser muito mais criativo, como diz o Winnicott.

Há uma maior integração das coisas, acho que é uma experiência única, transformadora. No nosso caso, analistas, uma análise é quase como fazer um trabalho prévio para depois poder ser possível, talvez, fazer uma análise a outrem. Mas demora tempo e as pessoas agora querem tudo muito rápido.

Sente que as pessoas a procuram hoje com problemas diferentes de há 20 anos? Mudou o tipo de pedido, ou aquilo que encontra?

Se calhar o que eu encontro são pessoas com a parte psicótica da personalidade mais desenvolvida, mais narcísicas. Muitas vezes, o pedido é só de ajuda, de psicoterapia, mas vão percebendo que é preciso mais. Eu agora já não ponho as pessoas em análise, dada a minha idade, a partir de uma certa idade não sabemos quanto tempo mais vamos durar, digamos assim, portanto já só faço psicoterapias, mas são psicoterapias analíticas.

 
Dentro da Psicanálise todos temos alguns autores que preferimos. Quer partilhar? Falou do Winnicott, há pouco.

Claro, gosto muito do Winnicott. Mas aquele que me conquistou mais foi o Bion, tanto que o meu trabalho para membro titular da SPP foi sobre a barreira de contacto. Tenho aqui o livro, «Pensar a Emoção» [Fim de Século Edições, 1999].

Conheço o livro, foi então o seu trabalho para membro titular?

Sim, foi em 1997 que me tornei membro titular. A capa não tem o subtítulo, que é: «O processo psicanalítico como reconstrução da barreira de contacto», de que fala o Bion. Ele depois deixou de falar sobre a barreira de contacto porque falou da cesura; ou seja, é a evolução do conceito a partir de Freud e, no final, há um capítulo sobre alguns dos meus casos, nomeadamente o de uma criança que era psicótica, e o de um adulto “borderline”.

Como disse, quando fiz a tese de licenciatura, ou monografia, sobre a dinâmica de grupo, fui encontrar o livro sobre os grupos do Bion. Na SPP, foi o Pedro Luzes que começou a falar do Bion e depois o Amaral Dias fez um seminário opcional sobre o Bion. Eu fiquei absolutamente fascinada, dava para perceber muito melhor muitas coisas. Agora é fundamental dar o Bion, nós no Núcleo Português de Psicanálise [NPP] damos o Bion nos seminários, nos últimos anos da formação.

Continua a ter uma experiência interventiva enquanto formadora no NPP.

Claro, por isso é que eu digo que continuo a ir a Lisboa, só desde o ano passado é que eu disse: «Não, eu agora já não tenho idade para estar sempre a ir a Lisboa!». Olhe, por causa da pandemia, posso agora fazer alguns seminários por Zoom, apesar de que não é a mesma coisa. E também faço supervisões, que eu gosto imenso.

No NPP, todos os meses vem um psicanalista estrangeiro, de Barcelona, de Paris ou de Londres, dar seminários aos candidatos, e nós, membros, continuamos a ter seminários, a apresentar casos, a discutir casos. Os psicanalistas convidados fazem seminários à sexta-feira à tarde e ao sábado para os candidatos, e nós, didatas, fazemos seminários clínicos com eles ao domingo de manhã.

A nossa formação nunca termina.

Nós queremos formação permanente e contínua. Lá por sermos membros didatas não quer dizer que a formação não continue a ser importante. E além de formarmos outros, continuamos a formar-nos a nós próprios.

Esse contacto com colegas de outras nacionalidades permite-nos conhecer outras formas de sentir, fazer e viver, a cultura influencia bastante.

E nós escolhemos colegas psicanalistas de diferentes correntes, que se podem completar. Há coisas que nos ajudam mesmo, que levam a que nos identifiquemos mais, ou concordemos mais com um certo tipo de funcionamento, do que com outro. Por exemplo, eu tive toda a formação com franceses, o que foi muito importante, mas agora gosto muito mais dos ingleses. [Risos]

Mas outra coisa relevante é a psicanálise de crianças e a relação mãe-bebé, que nós estamos a fazer no NPP e que a SPP também faz – e que, aliás, até comecei na SPP – que são os seminários de observação mãe-bebé, de relação mãe/pai-bebé. A psicanálise de crianças ajuda imenso, lembro-me de haver psiquiatras candidatos a psicanalistas que não faziam a menor ideia das fantasias das crianças. Até porque nós, quando trabalhamos com adultos, trabalhamos com o lado infantil dos adultos, portanto, a formação com crianças é importantíssima. Eu também sou psicanalista de crianças e adolescentes, sou reconhecida pela IPA [International Psychoanalytical Association] mas agora é exigida uma formação específica.

E também trabalhei aqui no consultório com crianças, mas é muito complicado porque se tem de trabalhar também com os pais. Trabalhei muito mais com crianças no Hospital.

É importante ter a noção do momento da vida em que estamos, disse que neste momento já não aceita pessoas para análise.

Não começo novas análises e também trabalho menos. Fui a imensos congressos e apresentei muitos trabalhos, mas agora vou a menos, já não me apetece, é muita gente. Prefiro coisas mais pequenas.

O que é preciso para ser um bom psicanalista?

Essa é uma boa pergunta. A primeira ideia que me surgiu foi que é preciso algo que, se calhar, não sei se nasce com a pessoa, mas que tem de vir de dentro, quer dizer, eu julgo que não se pode ensinar… É por isso que a análise é muito importante, porque aí vive-se essa aprendizagem da função psicanalítica da personalidade. Ou seja, o que é importante é ter essa função psicanalítica da personalidade, essa compreensão do que é o mundo interno e o funcionamento mental, ter a compreensão do funcionamento mental – que às vezes é difícil de ensinar, de explicar.

Daí a análise também ser tão importante.

É importantíssima, aí as pessoas, em si próprias, podem perceber os ganhos. E a supervisão também é outra coisa muito importante, assim como continuar a supervisão, mesmo depois de o caso ser validado. Eu lembro-me que o meu caso foi validado ao fim de dois anos e continuei. Tinha supervisão com o Amaral Dias, fui a primeira supervisanda dele como membro didata, e era fantástico, o que eu aprendi com ele foi fantástico e foi também um prazer.

Todas as pessoas que fizeram supervisão com o Carlos Amaral Dias dizem que aprenderam imenso. Ainda fez supervisão com ele em Coimbra?

Sim, eu ia a Coimbra, depois apanhava o comboio e ia para Lisboa ter supervisão com o Coimbra de Matos. Todas as semanas. E era engraçado porque o tempo de comboio servia-me para pensar imenso, para elaborar.

Isso foi algo que se perdeu nas análises ou nas psicoterapias online, as pessoas expressam-no.

Que quando iam no caminho, iam a pensar. Claro! Mas sabe, eu acho que as pessoas agora não têm tempo para pensar, eu vejo isso nos candidatos que têm o tempo todo preenchido, não têm tempo para escrever. Aos que estão em supervisão comigo, como fazem as análises a quatro vezes por semana, peço que escrevam pelo menos três sessões, porque senão não dá para perceber o que se está a passar, mas nem sempre o conseguem.

É uma formação muito exigente.

Muito exigente. Têm de ler imenso, preparar os seminários que têm mensalmente com os estrangeiros, e os vários seminários que têm todos os fins de semana com os portugueses.

O que podemos nós, psicanalistas, fazer pela divulgação da Psicanálise?

É uma pergunta difícil. Acho que são muito importantes as conferências abertas ao público. Se fosse possível fazer essa sensibilização onde as pessoas trabalham, por exemplo, junto das pessoas que trabalham num hospital, seria ótimo. Era o que nós fazíamos, primeiro no Centro de Saúde Mental e depois no Hospital. Isto para além das faculdades.

Há dias, uma senhora veio ter comigo e disse-me: «Não é a Fátima Cabral? Deu-me aulas na faculdade, nós gostávamos tanto de si, daquilo que nos ensinava, da Psicanálise, era muito bom.» E eu espantada: «Olhe, eu não sabia.» Eu tinha acabado o curso há pouco, não tinha experiência, era novíssima e, ainda por cima, sempre pareci muito mais nova do que era. Até em Paris, olhavam para mim como se fosse uma miúda, e ficavam espantados se eu, numa reunião de equipa, mostrava que sabia algo. Lembro-me de um psicanalista que, numa reunião, falou de um caso de um miúdo que lhe fazia lembrar algo, e eu disse: «A mim, faz-me lembrar a história do Nils Holgersson, da Selma Lagerlöf». E ficaram: «Ah! Já viste, portuguesa e desta idade?» Fiquei tão envergonhada, que depois nunca mais abri a boca!

Foi após a grande vaga de emigração portuguesa da década de 1960.

E foi também o tempo da ditadura, os portugueses… Nesse ano de 1975, aconteceram imensas coisas e eu levava os jornais, o Libération, com as fotografias do que se passava em Portugal, mas nunca ninguém me perguntou o que se passava. Os meus amigos eram os brasileiros, os do Québec, e depois encontrei muita gente, até portugueses, em Vincennes. Também foi ótimo. Foram uns tempos muito bons. Eu estava na residência do Brasil, na Cidade Universitária, depois havia os portugueses, na Casa de Portugal. Nós reuníamos e discutíamos acerca do que se estava a passar, era a pena de não estarmos cá a assistir a tudo. Mas já foi muito bom ter cá estado no 25 de Abril, foi das coisas melhores da minha vida.

Porto, janeiro de 2024

Entrevista realizada por Alexandra Coimbra
(Free Association Lisbon – Revista Internal Habitats)

 

Comments are closed.